Entretenimento

Paulo Afonso - Bahia - 06/08/2017

'Aldenora, Dionísio e a turma da cocada'

por Carlos Navarro Filho
Foto: Arquivo Pessoal

Atingida de revestrés pelo acaso que modela os nascituros, Aldenora veio ao mundo deveras prejudicada. É tanto que Tilda Parteira, acostumada a puxar centenas de crianças que “veja como são as coisas, mulher, vagavam sem rumo pela escuridão e agora são médicos e professores e engenheiros e contadores, sem falar nos vagabundos que vivem lá na Rua do Fogo fumando maconha, isso mesmo, essa erva do demônio que agora dizem que é um santo remédio pra tudo quanto é moléstia, mas que só serve mesmo é pro filho de Sergina acabar com suas cocadas quando chega em casa com os olhos avermelhados e a língua embolando, ô derrota pro finado Lídio, meu Deus...!”, mas como eu ia dizendo, assim que Tilda puxou Norinha pelos pés, resmungou: “a bichinha, com tanta gente bem apessoada na família foi nascer logo assim, coitada!”, e saiu pra pitar seu cigarro manso, costume que lhe acompanha desde a tormenta do parto dos gêmeos de João Cabeção, quando a peleja contra os atributos craniais dos dois varou a madrugada e deixou as intimidades de dona Eronildes numa desgraceira tal que nem uma pedra-ume inteira foi capaz de lhe entravar as beiradas.
Dionísio é outro que o lápis do destino rabiscou distorcido e nem em sonho lembra seu xará, sim, aquele mesmo, filho de Zeus e da princesa Sêmele, que tem a ver com colheitas de uvas, Olimpo e todas aquelas divindades gregas que conhecemos dos livros e das músicas de Zé Ramalho, a propósito, moço igualmente desarmonioso, mas que conseguiu aperfeiçoar a tez graças à força que as canções têm de alindar quem as canta.
Mas voltando ao nosso divo, trata-se de um caboclo baixinho e com voz de uma concertina atenorada que pode ser ouvida a léguas de onde ele tange seus bodes a caminho do bebedouro da fazenda Boa Esperança, lá na boca do Raso da Catarina, quase sempre usando um Ray-Ban descascado nas bordas e um surrado boné da Texaco - onde não se sabe se a desbotada estrela é a de Davi, do PT ou do All Star que ele nunca usou -, o que lhe deixa parecido com um personagem saído de um videoclipe de Chico Science rodado nos manguezais da terra de João Cabral e de Reginaldo, o Rossi.
O primeiro e definitivo encontro dos dois se deu na trezena de Santo Antônio, onde todo ano a família de Aldenora paga uma promessa por ela ter se curado de uma mudez que a acompanhou até os 17, idade em que finalmente parou de grunhir sílabas soltas e juntou-as numa métrica tão perfeita que assustou até os mais letrados de Glória, como seu Alfredo Campos, que certa feita iniciou um discurso com um surpreendente “de cócoras....!”, para, só depois de uma longa pausa, complementar: “me vejo diante desta situação!”, no que foi entusiasticamente ovacionado por uma encantada plateia que nunca ouvira algo parecido, com exceção, talvez, do dia em que Raimundo Reis, numa das muitas tertúlias regadas a Bacardi e Rodouro que aconteciam na casa de Lindemar, recitou Baudelaire e Rimbaud num francês tal que, segundo Alaor, só pode ter sido provocado pela “extravagancê da misturê”.
Mas como eu dizia, Aldenora não só se pôs a falar num português castiço, como começou a cantar no coral da igreja numa entonação tão bela, mas tão bela, que parecia que sua voz estava lhe pedindo desculpas pelo tempo que passou calada. E foi justamente quando ela, à capela, interpretava as Bachianas de Vila Lobos, que Dionísio, como se movido por um Red Bull que jamais tomara, criou asas e flutuou extasiado em busca da dona que emitia tamanho alumbramento.   
Nos olhos dele, ela refletiu Bottero. Nos dela, ele toou anjo barroco. Casaram-se na mesma igreja do primeiro encontro, do primeiro olhar, do primeiro enrubescimento. É claro que pensam em filhos, mas não agora. Por ora, Leco, o cachorro, Nina, a vaca, e Juninho, o gato fujão, fazem às vezes.
Todo dia, ao entardecer, os dois saem aboiando em busca das crias desgarradas, afinadíssimos. Ela, sem saber, lembra Callas. Ele, idem, raspa os agudos de Pavarotti. Na volta, gostam de se sentar perto da fogueira e cantar alguma das de Roberto pré-manias. Nessa hora, Leco sonha salsichas, Nina rumina feno e Juninho se lambe num autobanho antes de ganhar o breu da noite onde, segundo Tilda Parteira, vivem as criaturinhas que esperam ansiosas por uma mão que lhes dê à luz e a chance de “se Deus quiser, virar médico ou engenheiro ou professor ou contador, menos, pelo sangue de Jesus!, um desses maconheiros comedor de cocada da Rua do Fogo”.


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